Publiquei recentemente um Código de Direito de Autor e Direitos Conexos Anotado (Editora Almedina) o que me obrigou a ler, a examinar cuidadosamente e a fornecer o meu entendimento sobre cada artigo dessa lei.
Cheguei basicamente à conclusão de que o nosso Código requer vigorosa e urgente reforma e elencarei 5 razões (5 reasons why), a título de exemplo, que me levam a fazer tal afirmação. Há muitas mais, mas teríamos testamento e não artigo se as elencasse de fio a pavio. Aqui vão.
1. Uma manta de retalhos
Em Portugal, a publicação do Decreto-Lei 63/85 instituiu um novo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos. O Código monta, pois, a 1985 e ao longo dos anos foi alvo de múltiplas alterações que visaram adaptar a legislação portuguesa à legislação comunitária, nem sempre de forma muito coerente.
Infelizmente: Directivas houve que foram transplantadas para o Código e outras que foram implementadas através de diplomas autónomos.
Pior que isso: Mesmo as directivas que foram transplantadas para o Código nem sempre o foram de forma integral pelo que, em tais casos, encontramos alguns segmentos da lei comunitária no Código e outros segmentos no diploma que opera a implementação da lei comunitária.
Por exemplo: O artigo 68 (2) do Código confere certos direitos ao autor, mas os direitos do autor não se esgotam nesse artigo. Há que ter em conta diplomas avulsos que subsistem à margem do Código e que estabelecem, por exemplo, o direito de dispor do programa de computador, direitos de aluguer e de comodato, direitos de transmissão por satélite e de retransmissão por cabo e o direito de dispor da base de dados. Faz sentido? Nem por isso…
2. A Cópia privada
A cópia privada é aplicável, diz o Código, tanto ao campo do analógico como do digital. Até aqui tudo bem. Mas o nosso Código não exige a chamada «licitude de origem» no âmbito da cópia privada, autorizando, consequentemente, a execução de cópias a partir de cópias que não tenham sido, por sua vez, reproduzidas licitamente.
A questão não é metafísica, tendo consequências bem práticas: O Código português legitima, por exemplo, downloads através de sistemas Peer to Peer ou P2P, como os sistemas Kazaa, Limewire, BearShare, Morpheus e Acquisition, que estabelecem conexão a redes como a rede Gnutella, permitindo o acesso a outros sistemas e a partilha de cópias piratas.
Parecer do Tribunal de Justiça da União Europeia: Segundo o Tribunal de Justiça da União Europeia este tipo de regime da cópia privada é inadmissível e não pode ser considerado conforme ao Direito da União Europeia (Acórdão do TJUE, Processo C-435/12, 10 de Abril de 2014, ACI Adam BV e outros v. Stichting de Thuiskopie, Stichting Onderhandelingen Thuiskopie vergoeding).
3. O registo
Em Portugal, em conformidade com o artigo 5 (2) da Convenção de Berna, estabelece o Código que a protecção concedida pelo direito de autor é reconhecida independentemente de registo, depósito ou qualquer outra formalidade. Todavia, o registo é obrigatório para obtenção de protecção porque há que interpretar certos artigos do Código à luz do DL nº 143/2014, de 26 de Setembro que regula o Registo de Obras Literárias e Artísticas.
Problema incontornável: À sombra da Convenção de Berna a constituição do direito de autor não pode estar sujeita a registo, isto é, o direito de autor tem de
emergir com o mero acto de criação da obra (quer se trate de um livro, de uma peça musical ou teatral, de um filme, de um programa de computador ou de uma bases de dados). Ao exigir o registo como condição de protecção a nossa lei afasta-se da Convenção de Berna, exigência essa que tem de ser eliminada para que se ponha termo a tal violação da lei internacional
4. A protecção do direito de autor através do recurso à tecnologia
A União Europeia emanou em tempos que já lá vão uma directiva intitulada Directiva sobre a Sociedade da Informação (2001/29/EC). Teve essa directiva em conta que a revolução digital havia facilitado a execução e a disseminação de cópias piratas, que a indústria cultural havia passado a proteger conteúdos (música e filmes, por exemplo) por meio de medidas tecnológicas para impedir que fossem alvo de actos ilícitos, mas que se essas medidas fossem neutralizadas por hábeis hackers tal neutralização não era sancionada pela lei.
Passagem do cumprimento para o incumprimento da lei comunitária pelo Estado Português: Pelos motivos acima referidos a Directiva sobre a Sociedade da Informação proibiu a neutralização das ditas medidas tecnológicas, sendo que até há pouco tempo o Estado Português seguia essa orientação comunitária. Sucede que o Código foi alterado há cerca de 2 anos por certa lei, a Lei 36/2017, que permite a neutralização dessas medidas impunemente.
Consequência: Por exemplo, a Amazon e a Apple, utilizam medidas tecnológicas no campo dos E-Books (respectivamente, Mobipocket e FairPlay DRM) para impedir a cópia e a disseminação ilícitas de livros em formato digital e em Portugal, hoje, a eliminação dessas medidas tecnológicas é permitida, em geral, em violação da lei comunitária em contravenção (que apenas tal autoriza em casos muito restritos).
Que fazer? Mais uma vez há que alterar a lei nacional, por forma a cumprir a lei comunitária que, por sua vez, implementa, diga-se de passagem, a lei internacional.
5. A famosa Directiva sobre o Direito de Autor no Mercado Único Digital
Finalmente, como sabemos, a Directiva sobre o Direito de Autor no Mercado Único Digital terá de ser transposta para o território nacional nos próximos dois anos. O processo de transposição não será fácil porque a Directiva deixa múltiplos conceitos em aberto. O difícil processo de negociação, a intensa polémica e os constantes anúncios da iminente morte da Internet levaram à introdução, no texto aprovado pelo Parlamento Europeu, de soluções de compromisso sob a forma de múltiplos conceitos vagos que agora carecem de estudo e de preenchimento a nível nacional.
Conclusão
Tendo em conta (i) que legislador doméstico terá de alterar a lei de direito de autor para efeitos de transposição da Directiva sobre o Direito de Autor no Mercado Único Digital para o território nacional, (ii) que temos hoje uma legislação de direito de autor que inclui, a nível básico, não apenas o Código, mas, também, diplomas avulsos, o que dificulta, por demais, uma interpretação clara e coesa de normas cruciais e (iii) o incumprimentos de normas comunitárias e internacionais, urge reformar o Código de Direito de Autor e Direitos Conexos com coerência e absoluto respeito pelos preceitos comunitários e internacionais a que os Estado português se encontra obrigado.
Em suma: O Código é hoje uma manta de retalhos sem nexo e inclui violações da lei comunitária e da lei internacional que têm de ser eliminadas. Impõe-se que o legislador proceda à urgente reforma do Código com coerência e com absoluto respeito pelos preceitos comunitários e internacionais a que o Estado português se encontra obrigado. Não basta a implementação da Directiva Mercado Único Digital para dotar o país de uma lei robusta e com sentido para esta área.
Haja coragem!
Patricia Akester é fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual
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