As salas secretas, o culto a Satya Nadella, o mítico edifício 7, as reuniões em casas nas árvores, a luta pela extinção e as tecnologias de futuro. Estivemos no coração da empresa para saber qual será, afinal, o grande sucessor do Windows.
É difícil perceber onde acaba o território imperial da Microsoft e onde começa a restante cidade de Redmond. Os mais de 120 edifícios que a gigante tecnológica ocupa naquela região de Seattle, nos EUA, dão a sensação de que sozinhos formam a sua própria cidade, uma espécie de Microsoftópolis. Bem podia sê-lo: só ali a empresa tem mais de 55 mil funcionários, cerca de 40% da sua força laboral total e que está espalhada por 120 países.
Se os edifícios modernos em si são discretos, não ostentando grandes símbolos ou letreiros da Microsoft, já o constante vai e vem de autocarros brancos e verdes com o logotipo da empresa revela que entramos numa das zonas do mundo com maior talento por metro quadrado. É que a distância entre edifícios pode ser tão grande, que há serviço dedicado de transporte disponível para os funcionários.
Fundada há 44 anos, em abril de 1975, por Paul Allen e Bill Gates, a Microsoft contribuiu de forma significativa para a democratização do mundo digital. ‘Um computador em cada secretária’ foi durante muito tempo o mantra que guiou a tecnológica e todos os seus funcionários, que tornaram o sistema operativo Windows num dos produtos mais bem sucedidos da história moderna.
Mas o que acontece quando a missão começa a ficar desatualizada, sobretudo à medida que os computadores saltam das secretárias para os bolsos dos utilizadores no formato de um telefone portátil? A resposta é um dos maiores choques e períodos negativos pelo qual a empresa já passou – a nível mediático e mesmo a nível anímico junto dos seus funcionários.
“Ficava frustrado por ver que as pessoas não apreciavam o trabalho que a Microsoft fazia”, confidencia Steve Clayton, um veterano da tecnológica. Mesmo quando a imprensa escrevia títulos que diziam que a empresa era “disfuncional” [The New York Times], que “afugentou os melhores e mais brilhantes funcionários” [eWeek] ou que estava “muito atrás da concorrência” [Mashable], Steve escrevia no seu blogue sobre o que de bom lá se fazia.
Natural do Reino Unido, um dia recebeu uma chamada do outro lado do Atlântico – queriam que se mudasse para Seattle e que assumisse a liderança da equipa de storytelling da Microsoft. “Não digam a ninguém, mas pagam-me para fazer o meu hobby“, brinca.
Pela injustiça que sentiu e por colocar em palavras, para que o mundo consiga perceber, o que a Microsoft tem feito na última década, Steve Clayton é uma das pessoas que melhor conhece a transformação que a empresa sofreu, principalmente a partir de 2014.
“É uma empresa que mudou muito, sobretudo nos últimos cinco anos. Desde que o Satya assumiu a liderança como diretor executivo (CEO) da Microsoft, redescobrimos a alma da empresa”.
‘O Satya’. Esta foi uma expressão que ouvimos com regularidade na visita de dois dias que fizemos ao quartel-general da Microsoft. Refere-se, como é óbvio, a Satya Nadella, o indiano de 51 anos que se tornou no terceiro CEO da história da organização.
Se ao início as referências e citações de Satya Nadella que saíam da boca dos executivos da Microsoft com quem estivemos pareciam fruto de uma combinação para maravilhar os jornalistas, no final percebemos que era mais do que isso. Satya Nadella é o arquiteto da maior revolução que já existiu dentro da Microsoft e deu um novo propósito à empresa. A bajulação dos funcionários, que parece digna de um culto, são na realidade palavras de reconhecimento por ter conseguido acordar um gigante adormecido.
A maior prova disto? Em 2018, 17% dos novos funcionários que entraram na Microsoft eram, na verdade, antigos funcionários. Leu bem: pessoas que já lá tinham estado, saíram e agora querem voltar. E todas as segundas-feiras há um grupo de 100 novas pessoas que se apresentam em Redmond para começar – ou voltar – a trabalhar na Microsoft. O efeito Satya já não se sente só dentro das paredes da empresa, faz eco nas restantes grandes tecnológicas.
“A maior mudança que houve na empresa foi pela criação de uma nova missão. Permitir que todas as pessoas e organizações do planeta possam fazer mais”, explica Steve Clayton.
A partir daí houve toda uma avalanche de mudanças, sobretudo culturais: a maior reunião anual que a Microsoft fazia, dentro de um estádio de futebol americano em Seattle, foi trocada por uma semana de hackathon na qual os funcionários podem criar novos projetos; todas as semanas ‘o Satya’ tem um encontro com os trabalhadores no qual todos podem perguntar-lhe o que quiserem; todas as sextas-feiras, a equipa de liderança, com os principais executivos, reúne-se durante seis horas para falar de produtos, concorrência e da própria empresa; até os cartões de acesso foram mudados, os One Cards como são conhecidos lá dentro, que têm na parte traseira a missão pela qual todos se devem reger: “Empower every person and every organization on the planet to achieve more”.
Em termos práticos, isto significou que em vez de querer dominar o mundo do software, como tinha acontecido praticamente desde a sua criação, a Microsoft passaria a criar ferramentas, infraestruturas e novas tecnologias que permitissem aos outros assumir esse papel.
O melhor exemplo disto é talvez a plataforma de computação na nuvem Azure, que dá infraestrutura a outras empresas para que lá possam ter e desenvolver os seus serviços. Só entre outubro e dezembro de 2018, a divisão de ‘cloud inteligente’, como é definida nos relatórios financeiros da empresa, gerou 9,8 mil milhões de dólares. Mas há outros exemplos e que dificilmente trarão lucro à tecnológica.
É o caso da aplicação Soundscape, um dos dois projetos que mais captaram a nossa atenção durante a visita à gigante norte-americana – o outro foi a criação de personalidades para inteligência artificial. Imagine o Soundscape como uma versão do Google Maps, mas totalmente em áudio de 360º e que ajuda pessoas cegas a perceberem qual o caminho a seguir através de sinais sonoros.
Na aplicação define-se para onde ir e depois, através de uns auscultadores, começa a ouvir estalidos. À medida que roda sobre si mesmo, os estalidos mudam de direção, por exemplo, do ouvido direito para o esquerdo. O que isto diz é que o utilizador vai querer sempre seguir a direção dos estalidos e o ideal é que o som venha de uma direção central, um indicador de que estamos no caminho certo.
“Ainda tens de usar o cão-guia, mas se ouvir o som, posso encorajar o cão a seguir aquela direção específica”. Quem o diz Amos Miller, responsável de estratégia de produtos de acessibilidade na Microsoft. “Agora posso ser o guia da minha família”, revelou, com satisfação, durante a apresentação do projeto, e na qual se fez acompanhar do seu fiel companheiro canino.
Esta aplicação pode mesmo abrir todo um novo mundo de experiências para pessoas cegas – ao espalhar localizadores num rio, a Microsoft permitiu que várias pessoas tivessem a sua primeira experiência de caiaque a solo, pois sabiam exatamente para onde remar graças ao direcionamento do som em 360º.
A Soundscape está disponível, por agora, nos EUA, Canadá e Austrália, e só ainda não chegou à Europa por questões regulatórias – por cá, este produto é considerado como um dispositivo médico e tem de passar por um longo processo até ser aprovado pelas autoridades.
Este é um projeto que dificilmente vai trazer rentabilidade à Microsoft, mas isso não será motivo para ficar à margem de outros desenvolvimentos potencialmente milionários. Bem pelo contrário: esta nova Microsoft está disposta a correr todos os riscos em nome de dois elementos – inclusão e inovação pura e dura.
Só no último ano foram investidos perto 15 mil milhões de dólares em projetos de investigação e desenvolvimento. A taxa de sucesso dos projetos mais avançados da empresa, conhecidos como Blue Sky, varia, apenas, entre 1 e 10%, mas isso não é um problema. “Não me preocupo, porque os que têm sucesso têm um enorme impacto”, começa por explicar Henrique ‘Rico’ Malvar, brasileiro que é cientista líder da divisão Microsoft Research.
“Muitas das nossas invenções principais vêm dos chamados projetos Blue Sky [futuristas]. Há dez anos criámos as primeiras redes neurais, depois começámos a aplicar esta tecnologia em reconhecimento visual de imagens. O que começou como um exercício de matemática é a base para muita da inteligência artificial que a empresa tem agora”, exemplifica.
Atualmente a tecnológica está a fazer apostas em domínios que parecem dignos de um filme de ficção científica, como: avanços no armazenamento de informação em ADN, o que eventualmente permitirá guardar toda a informação disponível na internet num espaço equivalente a uma caixa de sapatos; criação de um computador quântico que promete resolver em minutos problemas que os computadores clássicos demorariam milhões de anos a fazer; e desenvolvimento de hologramas cada vez mais realistas com a ajuda de óculos de realidade aumentada.
Foi, aliás, a experiência com os ainda não-lançados HoloLens 2 que nos levou até um dos sítios mais secretos na Microsoft: o piso inferior do Edifício 92, mesmo por baixo do centro de visitas que está aberto ao público.
Mas das dezenas de edifícios que estão espalhados por Microsoftópolis, a história mais impressionante pertence ao Edifício 7, o edifício fantasma. Não por ter uma história sobrenatural associada, mas por nunca ter sido construído devido a burocracias. Porque sim, erros de palmatória também acontecem numa das maiores e mais bem financiadas empresas do mundo.
No futuro problemas como estes talvez não existam, pois nessa altura já a papelada está a ser tratada pelos sistemas de inteligência artificial que estão a ser criados dentro da empresa. Por exemplo, as previsões financeiras da Microsoft – a segunda empresa mais valiosa do mundo à hora de publicação deste artigo – são feitas por um algoritmo. “Já não o fazemos à mão”, confidencia David Carmona, diretor-geral da divisão de IA da Microsoft.
Este algoritmo também já ajuda a responder a questões como “qual vai ser a próxima grande oportunidade para a Microsoft, quem são os próximos clientes que devemos contactar?”, sublinhou o executivo espanhol.
Ainda que ninguém o tenha dito de forma aberta, o que a Microsoft está a fazer com todas estas apostas loucas é tentar descobrir a next big thing, o que no seu caso específico significa encontrar um sucessor direto do Windows. E neste aspeto a computação quântica surge na fila da frente.
A ‘cozinhar’ em segredo há 13 anos dentro da empresa, a Microsoft diz estar muito perto de ter a solução para um computador quântico de grande precisão e facilmente escalável. Disse que o faria em 2018, mas não conseguiu. Krysta Svore, diretora-geral desta divisão da empresa, garante que de 2019 não deverá passar.
“O que queremos fazer é dar o próximo passo. Há problemas que as máquinas que temos hoje não vão conseguir resolver. Qual é o próximo paradigma da computação que vai desbloquear todo um conjunto de soluções que não conseguimos atualmente, nem mesmo com supercomputadores? A revolução quântica vai desbloquear soluções que pareciam não ter solução”, sublinhou.
São várias as empresas – IBM, Google, Intel, Atos, D-Wave – que estão numa verdadeira corrida ao ‘ouro’ quântico, pois do outro lado estão prémios inacreditáveis, como a possível criação de uma molécula nova que permita capturar o carbono da atmosfera mais eficazmente ou a criação de um novo material supercondutor que não tem perdas de energia.
“Penso que a primeira aplicação comercialmente relevante vai ser na ciência dos materiais e química. Pensamos que vai ser a primeira área que nos vai permitir encontrar coisas novas”, assegurou Krysta Svore.
Digerir estas ideias megalómanas pode não ser fácil e é por isso que dentro da empresa há uma cultura de espaço para pensar e trabalhar: em vez de encontrarmos edifícios cheios de pessoas a programarem freneticamente em todos os cantos possíveis e imaginários, encontrámos antes edifícios amplos, confortavelmente decorados e onde o fluxo de pessoas é baixo, apesar de por lá andarem espalhados 50 mil funcionários.
Há inclusive duas casas de árvore – sim, como aquelas dos filmes norte-americanos – onde os trabalhadores e os executivos podem refugiar-se, seja para um projeto, seja para uma reunião, do mundo tecnológico e ficarem mais próximos da natureza. Porque “uma simples notificação”, explica Harald Becker, diretor de interação com a indústria da Microsoft, “pode levar a 10 a 15 minutos até que a pessoa entre outra vez em modo de trabalho profundo”.
Lá, nos EUA, tudo parece estar pensado ao pormenor para que todos estejam focados na grande missão da empresa. E se foi em Seattle que a Microsoft nasceu, é também ali que mais se luta pela sobrevivência e pelo futuro da empresa.
* A Insider/Dinheiro Vivo viajou para Seattle a convite da Microsoft